terça-feira, julho 16, 2002

Perdõem-me o post gigante, mas essa é a história de um dos álbuns mais importantes da minha vida, contada pelo Ricardo Schott
do DISCOTECA BÁSICA

"VIVENDO E NÃO APRENDENDO" - IRA! (WEA, 1986)

Vivendo e não aprendendo é considerado, numa análise saudosista, como sendo o melhor disco da banda - mas foi um álbum que fez a banda sofrer um bocado até que ele ficasse pronto. Antes do disco, o Ira! era uma banda de algum prestígio, algum sucesso, pouca grana e um LP lançado, com alguma repercussão (50 mil cópias). A gravadora decidiu dar uma incrementada no grupo - que já era uma lenda viva em São Paulo e começava a alcançar outros estados - chamando o fodão Liminha para produzir o quarteto. Uma experiência que, mesmo não maculando a música da banda, arriscou muito a sonoridade do Ira!, como veremos a seguir (bom, esta é a MINHA versão...).

O IRA!: Marcos Nasi Valadão nos vocais, André Jung na bateria e percussão, Ricardo Gaspa no baixo e o poderoso Edgard Scandurra nos vocais, guitarras, violões, teclados, craviolas, samples e tudo o mais. Será que alguém ainda não sabe? Bom, o disco ainda tinha participações de um quarteto de cordas, de um trompetista e de Ana Maria Machado (das Mercenárias) fazendo a guitarra-base nas duas faixas ao vivo.

O DISCO: Ao chamar Liminha para produzir Vivendo e não aprendendo, a WEA pretendia fazer com o Ira! o mesmo que, anos depois, fez com o Rappa, quando chamou o mesmo Liminha para produzir Rappa-Mundi: tirar uma banda pouco conhecida - mas com um potencial comercial absurdo - de seu gueto e colocá-la nas paradas de sucesso e na boca do povo.

Com o Rappa, houve um encontro perfeito: o disco vendeu muito bem, colocou o Rappa na mídia e até alavancou as vendas do primeiro CD da banda, que pegava poeira nas lojas. Com o Ira!, à primeira vista, não se pode dizer que houve um encontro prejudicial: Vivendo... vendeu bem, tem uma qualidade que até hoje desafia bandas novas, é um disco que consegue combinar potencialidade comercial e boa qualidade musical e acabou dando à banda um disco de platina. Só que, convenhamos, rock não é reggae, Ira! não é Rappa, Nasi não éFalcão, Edgard Scandurra não é Marcelo Yuka e por aí vai. Os problemas que a produção de Liminha causou ao disco e ao grupo já podem ser escutados na abertura da segunda faixa, "Casa de papel", na qual um solo de bateria com som de caixa de fósforos quase põe tudo a perder, dando ao Ira! uma cara radiofônica e new-waventa que eles não mereciam e não podiam ter.

Tretas com produtores à parte, Vivendo... é tido por alguns fâs do Ira! - o Michel entre eles - como sendo o melhor disco da banda. É um disco realmente muito bom, embora dê para sentir que o grupo não está tão espontâneo. A overprodução de Liminha perverteu o espírito rock´n roll do grupo, dando ao Ira! uma cara muito oitentista - não foi à toa que o Ira! nunca tocou tanto em rádio quanto naquela época. Mesmo assim... "Envelheço na cidade", a faixa de abertura, é uma das mais emblemáticas da banda, com um refrão levanta-galera de arrepiar (quem nunca cantou "feliz aniversário/envelheço na cidade"?). "Casa de papel" é uma das melhores músicas da banda, com uma letra ingênua e irônica ("foram bons os tempos das descobertas da juventude/mas hoje você gosta de pernas bem mais grossas"). "Dias de luta", um hard rock leve (hard rock leve?) à maneira do Who, talvez seja a melhor letra da história do Ira!, com um verso que define bem a filiação adolescente do grupo ("se meu filho nem nasceu/eu ainda sou o filho"). Nessa música, Edgard cria belíssimas tramas de guitarras e prova que é um excelente guitarrista sem precisar dar uma de datilógrafo, como era comum na época. Fechando o lado A, a energia quase paulwelleriana de "Tanto quanto eu" (em parceria com Gaspa) e o funk-rock nervoso de "Vitrine viva", parceria com um certo Luiz Arnaldo Braga - sente-se muito a falta, nesta música, de uma qualidade de gravação mais decente, com mais peso, mais grave, mais eco, mais tudo, como disse o Tim Maia lá em cima.

No lado B, a prova viva de que as tentativas da gravadora de transformar o Ira! numa banda "oitentista" jamais dariam certo: "Flores em você" mostrava Edgard tocando um violão quase erudito, sob um quarteto de cordas regido por Jacques Morelembaum. A pegada de Edgard no violão, espanholada, transformava o Ira! numa banda deslocada de tempo e espaço, totalmente diferente do que se ouvia no rádio da época. Depois vem "XV anos (Vivendo e não aprendendo)", um dos momentos mais belos e melancólicos da história da banda: trata-se de uma balada meio Beatle, das melhores já gravadas pelo grupo. Já a urgente "Nas ruas" trazia algumas escorregadas de Edgard na composição da letra (e de Nasi nos vocais também), mas o resultado final era espontâneo e positivo como tudo da banda.

Finalizando o disco, o Ira! aproveitava para se auto-homenagear, gravando as duas músicas do compacto de estréia, "Gritos na multidão" e "Pobre paulista". Diga-se de passagem, não foi idéia da banda: a gravadora queria que o Ira! gravasse as duas músicas para utilizá-las como faixas de trabalho. Só que o Ira! não tinha mais interesse nas músicas e acabou sabotando a idéia da gravadora, gravando-as ao vivo para que depois a WEA não tivesse a idéia de usar músicas com barulho de palmas e platéia cantando em playbacks. No fim das contas, Vivendo e não aprendendo é um disco que é puro drible, e mesmo não sendo o melhor da banda, faz jus à vendagem que teve e era o disco perfeito para colocar o Ira! na boca do povo, naquele momento.

PERFORMANCE: Ao que consta, Vivendo... deu ao Ira! seu primeiro e único disco de platina. A qualidade e a musicalidade do disco eram tão imensas que público e crítica jamais ficariam de braços cruzados. As histórias de Edgard como homem-banda e agitador do cenário pop-rock paulista ganhariam status de lenda e chegariam ao imenso público que a banda já arrebanhava no Rio. A Gianinni ganhava seu mais ilustre garoto-propaganda, já que Edgard não desgrudava de sua "gianola", como chamava sua primeira guitarra. E as inquietações mod da banda chegavam às aberturas de novelas globais, já que uma boa alma resolvera colocar "Flores em você" na abertura da novela O Outro - o que, na prática, significava que milhares de pessoas escutariam a música do Ira! de segunda a sábado em horário nobre. Foi graças a O Outro que muita gente ficou conhecendo a banda.

DEZESSEIS MÃOS: Durante a gravação do disco, a banda arrumou muitas encrencas com o produtor Liminha. O Ira! levava discos do Jam como referência para a gravação do LP e tinha que aturar piadinhas do produtor, que estava mais interessado em altas tecnologias de gravação. De saco cheio, a banda passou as mãos nos tapes e se mandou do estúdio carioca Nas Nuvens para o paulista Transamérica, onde tocaria as sessões ao lado do produtor e técnico Paulo Junqueiro (que teve Edgard bufando no seu cangote o tempo todo até que o disco ficasse satisfatório). No fim das contas, a produção do LP foi assinada por oito pessoas (!): Nasi, Gaspa, André, Edgard, Liminha, Paulo Junqueiro, o técnico do Nas Nuvens Vitor Farias e Pena Schmidt. O encarte do LP ainda dá crédito a um assistente de produção chamado Arthur Bello. Se a banda queria provocar Liminha - que era o bacanão da WEA e mais top de linha do que os artistas que produzia - conseguiu... O buraco ao qual o Ira! seria relegado na WEA é a prova viva disso.

O SHOW: O disco foi lançado em alto estilo num show na Praça do Relógio da USP, em outubro de 1986. O show foi aberto pelas bandas Os Vultos e Violeta de Outono. Tem quem considere este show, até hoje, um dos melhores da banda.

CANTE COM O NASI: Todo mundo que acompanha o Ira! desde o início sabe o quanto Nasi suou para aprender a colocar a voz. Do vocalista quase tímido de Mudança de comportamento (1985) ao berro quase soul dos últimos discos da banda, muita água rolou. Mas os vocais atabalhoados de "Pobre paulista" entraram para a história. Tem muita gente que só foi entender a letra quando pegou o encarte. O verso "dentro de mim sai um monstro/não é o bem nem o mal" já foi transcrito em revista de cifra de violão como "dentro de um ensaio monstro/não é o primeiro mau" (e até o jornalista André Barcinski já usou a expressão "ensaio-monstro" para se referir a um ensaio dos Red Hot Chili Peppers), assim como o verso que fala em "é apenas indiferença/é apenas ódio mortal" já virou algo como "a penosa indiferença". A música acabou entrando para o famoso clube encabeçado por "Noite do prazer", do Brylho (cujo verso "tocando B.B. King sem parar" já virou "trocando de biquíni sem parar" nas mãos de muito cantor de boteco) e "Até quando esperar", da Plebe Rude (que já teve o verso "nascemos já com uma bênção" transmutado em "nascemos já com uma missão" e até "nascemos já com uma pensão").

COMO DIZ O OUTRO: Com o sucesso adquirido graças à novela O Outro, a WEA reeditou Vivendo... em 1987 numa edição comemorativa, estilo presente de grego: sem o encarte e com uma faixa ridícula no canto superior esquerdo da capa, informando que o disco trazia a música da abertura da novela. A mandinga da Globo dera certo: várias pessoas que, em condições normais, nunca comprariam discos do Ira!, conheceram a banda a partir da trilha da novela, que também vendeu horrores. O engraçado é que, hoje em dia, pouca gente se lembra da novela O Outro. A novela era uma espécie de ancestral de O Clone, na qual o ator Francisco Cuoco interpretava dois personagens que não se conheciam e, por acaso, se encontravam em um banheiro público, lá pela metade da trama. Talvez só mesmo os fâs do Ira! tenham algum motivo para se lembrar desta novela, que, ainda por cima, tinha uma Malu Mader em início de carreira, interpretando uma malandra suburbana chamada Glorinha da Abolição, e Isis de Oliveira fazendo papel de mãe da irmã Luma de Oliveira. Ah, não f***ode!

Curiosidade: numa entrevista da época, o Ira! revelou que "Flores em você" não gerou muita grana. "Quem recebe retorno é o Edgard, que é o autor da música. O que a gente recebe é insignificante...", revelou Nasi.

COMPRE DJÁ!: O disco Vivendo e não aprendendo saiu em CD pela terceira vez (!) em 2000. A primeira edição se deu quando os primeiros discos de rock nacional começaram a sair em CD, por volta de 1991. A segunda foi por volta de 1996 na série 2 é demais, da WEA, que lançava discos do catálogo da gravadora em horrendas edições 2 em 1 por preços promocionais (no caso, o Ira! teve Vivendo... lançado junto com Mudança..., o primeiro LP). E a mais recente é uma edição de luxo, com todos os encartes originais, remasterização digital e faixas bônus.